Mais uma vez, o mundo volta os olhos para a região do Mar Negro e o Mar de Azov. Após todas as tensões de 2014, após a queda do então presidente ucraniano, Viktor Yanukovich fez com que a maioria pró-Rússia da península fizessem um referendo para que ela fosse uma republica autônoma ligada à Rússia. Após esse episódio mais recente, dentre outros que ocorreram na história envolvendo a região, agora uma nova trama se desenvolve na região envolvendo não apenas a Ucrânia e Rússia, mas também os países membros Otan, em especial, os Estados Unidos.
A Criméia
A Criméia é uma península ao sul da Ucrânia com uma área de 27.000 km² é banhada pelo Mar Negro e o Mar de Azov. A região ficou sob domínio russo até 1954, quando foi anexada à Ucrânia pelo então primeiro ministro da URSS (União Russa das Repúblicas Socialistas Soviéticas) Nikita Krushchev que era de origem ucraniana. Todavia, sempre houve desejo da população em se juntar à Rússia, dado que 58,3% da população é russa, 24,3% ucraniana, 12,1% de tártaros e o restante de outras minorias étnicas como búlgaros, armênios, bielo-russos, alemães, gregos e judeus. Assim, a região é fortemente influenciada pela cultura e política russa.
Um lugar de disputas
Apesar das disputas ao longo do século XXI como a de 2014 e a atual, a região foi palco de muitos conflitos ao longo dos séculos. Após à chegada do Império Romano, a região foi palco de batalhas entre romanos e hunos da Ásia e, posteriormente, por godos germânicos, até o Império Bizantino se estabelecer. No Século IX, Cirilo chegou ao local, o criador do alfabeto cirílico além de levar o cristianismo à região, tempo em que as primeiras tribos russas chegaram, tanto que o príncipe Vladimir, primeiro a aderir a religião ortodoxa se batizou lá. No século XII, a Criméia foi conquistada por cumanos e, posteriormente, por mongóis, levando a religião mulçumana. No século seguinte, o ocidente voltou exercer influência, com os Genova comprando a península, a fim de fortalecer a sua presença na rotada seda que passava por ali. Em 1475, mais uma vez o oriente passa a dominar a região, com a Criméia se transformando em um protetorado Otomano até a Guerra Russo-Turca (1768-1774), culminando, finalmente no domínio dos russos. Ao fim do Século XVIII, os russos estavam a exercer forte influência no Mar Negro, Báltico e Mediterrâneo, o que assustava nações como o Reino Unido, França e ao Reino da Sardenha. Em 1853 os russos invocaram o direito de proteger Jerusalém, gerando preocupações ao império Otomano. Após o Império Russo derrotar uma frota turca na Batalha de Sinop, o Reino Unido, juntamente com a França, o Reino da Sardenha, os Otomanos e com o apoio do Império Austro-Húngaro. Após a guerra, o czar Alexandre II aceitou não expandir a presença russa para além do Danúbio e tirando suas troas marítimas da região do Mar Negro e não tentaria mais buscar proteção de Jerusalém, conforme assinado no Tratado de Paris. As tensões retomaram um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, novamente com os russos contra os otomanos e britânicas e novamente recuo do gigante do leste europeu.
Atualmente: Mais uma vez ocidente versus Rússia
Em 2014, a queda do então presidente da Ucrânia se deveu ao fato dele buscar maior aproximação com os russos em detrimento de uma aliança com a União Europeia. A queda do presidente ocorreu, pois, diferentemente da Crimeia, no restante da Ucrânia há um forte sentimento anti-Rússia, assim como em outros países que fizeram parte da Cortina de Ferro. Com a queda da do presidente, a republica autônoma realizou um referendo interno com parlamento local sendo de maioria pró-Rússia a nomear Segei Axionov como premiê da região. Com isso, Moscou buscou normalizar a situação, com o argumento de estar atendendo o anseio da situação. A atitude do Kremlin não foi vista de forma positiva pelo ocidente, isto é, os membros da OTAN, fazendo com que novas tensões escalassem na península. Já em 2014 Putin, presidente da Rússia, começou a anexação da Criméia à Rússia, apesar da anexação não ser reconhecida pela União Europeia e pelos Estados Unidos. Em 2019 e 2020 alguns temores voltaram, com drones sobrevoando a região enquanto Putin começava o início da integração da Rússia com a península com inauguração da ponte ferroviária que liga a Rússia à Criméia. Com a integração, os russos também passaram a aumentar a sua participação militar na região. O atrito entre ocidente e Rússia aumentaram com a vitória de Joe Biden. O clima que já não o mais amistoso com Donald Trump vem se intensificando no começo do governo democrata, com Biden fazendo comentários bem redundantes em relação ao presidente Vladimir Putin, o chamando de “assassino”, algo considerado incomum em tempos de paz, principalmente ao se tratar de duas potências militares. Biden também anunciou apoio “inabalável” aos ucranianos e eles dão forte sinais de desejo de integração à OTAN o que desagrada os Russos que, diferentemente do que ocorreu nos séculos passados, parece não estar disposta à retroceder.
Questão econômica:
Finalmente, vem a questão econômica. Geralmente, as decisões econômicas surgem como reflexo de eventos sociais. A busca por influência política da frente ocidental contra a Russa acabam sendo forte fator, mas o econômico também é resultado da questão geográfica. Dentre várias áreas da economia boa parte dos economistas a geografia econômica se mostra de grande importância para entender eventos como esse. Dentro da geografia econômica existe o conceito de fatores fixos. Fatores fixos são importantes elementos que potencializam a produção de riquezas em determinado espaço geográfico como regime pluvial, relevo e regime hidrográfico, qualidade de terras, clima, latitude, jazidas de minério, vida vegetal e animal e a Península da Criméia possui tais fatores. Como está localizada entre o Mar Negro e Mar de Azov, o posicionamento acaba sendo positivo para quem fica com a península, no caso da Rússia, um de seus gasodutos, o South Stream passa pelo mar negro, saindo do país e chegando na Bulgária e, de lá, alcançando outros países europeus. Apesar das sanções impostas pela UE, países como a Alemanha são fortemente dependentes do gás da Gazprom, companhia russa de energia, assim como outros países da Europa, o que pode acabar dividindo algumas decisões dentro da OTAN. Ademais, a península é rica na produção de grãos, vinhos e ter portos que escoam produção diretamente para Europa e Turquia. Como medida, Moscou forneceu US$ bilhões de dólares em gás natural para colocar bases militares no país e tende estender seus investimentos na região ao passo que a integração evolui.
Pelos mesmos motivos, é interessante para Ucrânia permanecer com a península, assim como para os seus aliados, no caso a União Europeia e os Estados Unidos. A Ucrânia é fortemente dependente de gás natural e ao escalar dos atritos, os russos podem responder de forma negativa, impactando o recebimento de energia do país e, em alguns casos, até de países de alguns de seus aliados.
Para os cidadãos da Crimeia, há sentimento misto. No início houve reclamações quanto a preferência de instalação de comércio de russos com passaporte e benefícios para quem os possuía, piora de condições para a minoria tártara e queda no turismo. No entanto, a aposentadoria das mulheres caiu de 65 anos para 55 sob anexação dos russos. Todavia, em 2016 a economia da Crimeia cresceu fortemente, com os investimentos russos um novo grupo de turistas acessando a região, segundo Vladimir Konstantinov, presidente o órgão legislativo da Criméia. Apesar da crise econômica gerada pela COVID-19 e as medidas restritivas da União Europeia à Rússia, Putin mantém sua popularidade e influência, de modo que a recuperação econômica do país seja atribuída a ele, o que contribui para que a Rússia não retroceda em seu avanço na península.
As trocas de farpas e movimentações militares acabam por trazer riscos para estabilidade global, dado que não envolve apenas um ou dois países, mas também seus aliados. China e Rússia mostram estar cada vez mais unidos e, mudando do Mar Negro para o Mar do Sul da China, a questão de Taiwan também pode intensificar mais um ponto de instabilidade gerando discussões entre líderes globais e retaliações econômicas, o que pode impactar os mercado financeiro levando maior volatilidade aos mercados. Assim, também cabe aos investidores e profissionais do mercado financeiro ficarem atentos ao cenário geopolítico.
Autor: Matheus Jaconeli